10 de setembro de 2017

por vezes, quando me levanto depois de escrever, a minha casa parece não ser a minha casa. distante dos objetos que a preenchem, sinto-me nela como se estivesse de visita, como se estivesse longe de onde realmente vivo, numa casa, digamos, emprestada. nem as suas paredes nem aquilo que a ocupa me pertence, não tenho nada para além do corpo que se move no escuro, tateando corredor fora até ao interruptor. e na verdade, mesmo a esse corpo tenho dificuldade em chegar. tudo se passa como se demorasse a voltar de uma viagem a um sítio longínquo. regresso a casa lentamente e penso por vezes que talvez seja essa uma das razões porque não consigo escrever senão no mais completo isolamento e silêncio. não sou só eu que regresso, mas as próprias coisas. também elas voltam a murmurar e a olhar para mim, querem contar-me a sua história. a absoluta normalidade tem algo de comovente e ao mesmo tempo de solene. a vida, destinada a ser perdida, tem qualquer rotina de celebração.

6 de setembro de 2017

o ator entra no elétrico e senta-se no primeiro banco disponível, à minha frente. está suado, tem o cabelo oleoso, umas botas grossas de caminhada apesar de estar calor. vi-o num filme e vi-o depois horas a fio numa performance onde se nomeava «o poeta» e bebia whiskey. tinha o rosto pintado nesse dia e um chapéu, parece-me, mas não dou a certeza. no filme tinha um fato preto e vivia num quarto em madeira. depois de se sentar respirou fundo e abriu um livro. não vi que livro era, tinha uma capa azul e estava bastante usado. quando saí do elétrico continuava a ler. não me viu. não sabe que por vezes recordo a sua voz, uma voz sem palavras, suave e densa. não sei se é um bom ator, mas gosto do nome dele. vi-o entrar no elétrico e a ler um livro hoje ao final da tarde e pensei que não gostaria de ser vista, ainda que não me falassem. ter um rosto público seria uma tortura a que não saberia resistir. não há nada pior do que ser visto, que desconhecidos tenham uma ideia superficial de nós e que essa ideia tenha um qualquer significado. contudo, ter um nome também me desgosta. há em mim uma exaltação pelo anonimato, pelo vulto, o ocluso, por ser uma massa sem espessura e sem sonoridade. existir no corpo e na voz (interior) de um leitor ao invés de no meu próprio corpo e voz. e já que tudo se reduz a isso, ser o múltiplo em vez do uno.

5 de setembro de 2017

é uma mulher. muito curvada, o cabelo todo branco e a pele praticamente da mesma cor, alimenta os gatos que se escondem no jardim abandonado de um palácio lisboeta. de sua casa traz o saco de comida seca e pão duro. dirige-se às traseiras do palácio e ali, no muro com altas grades, distribui a comida por vários recipientes. os gatos não demoram a chegar. um preto, um branco, um cinzento listado, alguns muito sujos, alguns bebés, miam em cima do muro enquanto ela fala e olha para mim desconfiada quando passo por eles. só falámos uma vez. contou-me a vida toda e agora este olhar, duro, hostil, silencioso. esteve para casar, mas a irmã adoeceu e ela veio tomar conta dela para a casa onde ainda hoje vive. passo por lá com frequência e espanta-me sempre que só veja estendidos trapos rasgados, uns a seguir aos outros, ou cuecas. a casa fica num rés-do-chão que mais parece uma cave, com degraus que descem para o interior e janelas ao nível da estrada, sempre protegidas por uma rede contra as moscas. o estendal foi feito com um pau de vassoura e um cordel verde, já muito gasto. sempre que posso, espreito para dentro da casa, como se com isso pudesse saber mais sobre a sua vida. às vezes, quando a encontro a alimentar os gatos, digo boa tarde, mas ela nunca responde, continua imersa na sua tarefa a falar com os gatos que miam. lembro-me que fez bordados e costura para ganhar a vida, que a irmã entretanto morreu e que já não trabalha. nunca, quando passo por casa dela, oiço um rádio ou uma televisão acesos. pergunto-me se se sente só, se precisará de dinheiro, se abre álbuns de fotografias para recordar os tempos de juventude. pergunto-me o que será dos gatos quando morrer.

1 de setembro de 2017

perdidos nesse grande parque de diversões que é Lisboa, os casais de turistas deixam escapar pequenos gestos íntimos na rua, sem perceberem que alguém os observa ou sem se importarem. a cidade readquiriu o estatuto de cosmopolita que tinha nos anos 40, quando era um refúgio da guerra, e goza atualmente da fama de ter um renascimento cultural motivado pelas políticas socialistas, pelos empresários e pelos empreendedores, essa nova espécie que não se sabe exatamente o que é. quando estou na rua, abrigo-me nesses gestos deixados para trás ao acaso e sem preocupações, como trapos. porventura, serei eu a recordá-los mais do que os próprios, da mesma maneira que eles recordarão a cidade como haverá de deixar de existir.

31 de agosto de 2017

na exposição que está atualmente no Museu de Arte Antiga sobre o tema do culto mariano, estão representadas obras que vão desde a antiguidade (século III) à contemporaneidade. nelas, desde o Renascimento, ao Maneirismo e passando pelo Barroco, a figura da Virgem surge normalmente acompanhada de anjos, santos, apóstolos, mártires e naturalmente, de Cristo, menino, morto ou ressuscitado. poucas são aquelas que apresentam a Sagrada Família, ou seja, que incluem José, e, mesmo naquelas onde a sua figura surge, é de forma lateral, obscura, enigmática. sem o contestar, toda a iconografia religiosa confirma o silêncio do pai adotivo nas Escrituras. ausente ou silencioso até à sua morte, mesmo quando recebe em sonho o aviso do anjo para partir para o Egito, a sua obediência e contemplação são absolutas. até Deus fala nas Escrituras através de símbolos, como é o caso da sarça ardente. José preconiza uma disciplina de silêncio que excede a representação, aquela que serve a atenção pura e a meditação, mas também a sua dimensão soturna e escandalosa. quem se cala, quem se ausenta? o pai, «a medida de todas as coisas», diria Kafka.
o que pensará o meu gato quando está quieto à janela a olhar para as presas que não pode alcançar? o mesmo que eu, digo-me, quando olho para o tempo que não me pertence.

28 de agosto de 2017

é sempre difícil para uma mulher começar a falar entre homens. a voz tem de encontrar forma de se impor e optar, pelo menos a princípio, entre um registo que não é natural e os momentos de silêncio, raros e curtos. para que o seu discurso seja tido em conta, não basta contudo fazer-se ouvir. é necessário legitimá-lo através de sobrepostos discursos, com os quais por vezes se recorre à lembrança de que fazerem-se ouvir não deveria implica metamorfosear a palavra no masculino. para audiências mais avisadas, isso costuma bastar. ainda assim, contudo, parece-me sempre que é o silêncio que vence entre a comunidade das mulheres, cujos olhares e gestos, quase sempre invisíveis para os homens, falam mais do que as próprias vozes.

27 de agosto de 2017

a primeira abordagem do termo terra nullius sugere a ideia de uma utopia paradoxal: no nosso imaginário, o termo refere-se a uma terra onde a paz perdura através da vastidão sem pertença, mas também a uma terra abandonada, terra que é impossível penetrar e habitar. é, por isso, ao mesmo tempo, a única terra que ainda há a desbravar, ideia que nos transporta para as grandes expedições, do Ártico, das florestas virgens, do mar, aventuras que já só poderão ter lugar hoje no espaço sideral ou no interior da Terra. o termo sendo romano, reconhece-se à partida a sua arbitrariedade, já que os romanos não descobriram nada: os seus territórios foram conquistados à força, assim como foi a América, a Austrália ou o Brasil. para que isso fosse possível, houve portanto uma adaptação do significado do termo e assim, em vez de abandonada, essa terra não tinha «sociedades civilizadas». deste modo, era considerada desocupada ou desabitada. porém, este sentido legal do termo e as consequências que daí decorrem (escrevo no presente do indicativo porque na Austrália o conceito de terra nullius continua a ser apresentado em ações judiciais pelos povos aborígenes), não afetou o teor fantasioso que ainda hoje sugere. é como se a ideia de uma terra pura, devastada pela solidão que ninguém pode viver, insondável e incompreensível, permanecesse no imaginário contemporâneo reforçado por um silêncio que serve a aniquilação. 

26 de agosto de 2017

ainda perto da estação, decidiram parar para almoçar num restaurante à beira rio com uma esplanada onde sobrava uma mesa coberta por toalhas brancas de papel. Clara sentou-se em primeiro lugar, seguida dos pais, Virgínia a seu lado e Armando à cabeceira. Xavier e Rita, o casal de amigos de Clara que os iria albergar alguns dias na quinta onde viviam, perto de Santarém, sentaram-se nos lugares que restavam. o calor começava a subir, assim que todos concordaram que tinha sido uma boa decisão pararem para comer e refrescarem-se antes de seguir caminho. um atento e denso silêncio, que Clara se prontificou a desfazer, acolheu-os à mesa. depois de ter passado o olhar por cada um dos convivas procurando inteirar-se dos seus estados de espírito, pegou no menu para apresentar os pratos do dia. o pai, que mais a preocupava, pois era dado a estados sombrios e desajustados, parecia bem disposto, com um ar fraterno, e a mãe, sempre preocupada com todos, parecia descontraída, embora cansada. à frente de Clara, Xavier mantinha o sorriso de sempre, discreto e impenetrável e Rita, sentada à frente de Virgínia, foi a única a devolver o olhar a Clara. para sua surpresa, a escolha das refeições foi rápida e animada. Clara nunca tinha convidado os pais para casa de amigos e, por isso, sentia algum nervosismo perante o fim de semana que os esperava. mas, depois de terem sido também eles convidados, Xavier e Rita tinham-se mostrado peremptórios e Clara, que conhecia bem a sua hospitalidade, concordou. Armando foi o primeiro a pegar no pão, seguido de Xavier e depois Clara. Armando forrou um pedaço com uma fatia de queijo e Xavier comeu primeiro sem nada e depois com o outro queijo que estava na mesa. Virgínia também comeu desse queijo. Clara abriu a manteiga e Rita não tocou no pão, ficando a comer azeitonas pretas com alho e azeite. Clara temia saber por onde a conversa iria começar e acabou por ser ela própria a dar o mote pois era, até àquele momento, a única a saber que Armando e Xavier tinham passado pela mesma zona em Angola, na altura da Guerra Colonial. enquanto o almoço não chegava, depois do quebra gelo de Clara, descobriram que tinham feito conhecimentos em comum e que por pouco não se tinham cruzado. durante um bom bocado, falaram apenas um com o outro, ora olhando-se nos olhos, erguendo várias vezes as sobrancelhas, ora acenando em confirmação com a cabeça, como se apenas eles os dois conhecessem um certo conto de fadas cujo negrume era para os restantes invisível. Virgínia, cuja história também parecia, em muitos aspetos, pertencer a um conto de fadas de terror, manteve o olhar sobre a toalha branca e o silêncio. ainda que tivesse conhecido Armando em Angola, talvez pensasse que a sua história só poderia ser contada a outras mulheres ou, pelo menos, distante dos reparos do marido. Rita olhou para ela, Clara olhou para Rita, mas as histórias de guerra não se podiam interromper ou ser manchadas pelo ruído de discursos paralelos. Clara lembrou-se que esse conto de fadas feminino continha ameaças, uma fuga com a roupa que tinha no corpo, um casamento num barco por procuração, a chegada a um país desconhecido, uma receção por anónimos, um aborto, um nado morto. a comida chegou. Xavier e Rita partilhariam uma açorda de sável, Clara e Virgínia uma caldeirada à fragateiro e Armando uma perna de cabrito com grelos. a conversa foi alternando entre África e a quinta a que chegariam dali a umas horas, Rita e Xavier explicando com amabilidade que poderiam estar como em sua casa e usufruir de todos os espaços de lazer, do alpendre à piscina, ou mesmo dar uma volta pelo terreno, onde havia toda a espécie de animais e plantas, como árvores de fruto, um canteiro de aromáticas, cavalos, ovelhas e patos. pediram mais uma garrafa de vinho. Virgínia parecia iluminar-se quando se falava da quinta: os seus olhos sorriam. era raro sair da terra, mais raro ainda estar com outros casais. a ocasião havia sido longamente preparada e, apesar da insistência em contrário de Clara, tinha guardado o melhor vestido na mala. nisto, Clara apercebe-se com repulsa que Armando devorou a perna de cabrito enquanto todos ainda estavam a comer, chamando o empregado e pedindo imediatamente uma sobremesa e um café sem esperar por ninguém. Xavier não pareceu reparar, mas Rita ficou confusamente obstinada em comer devagar. logo a seguir, Virgínia termina também a sua refeição e pergunta «o que é que há de fruta?», como se dali o empregado a pudesse ouvir. Clara resmungou o mais gentilmente possível, baixinho e ao ouvido da mãe, «espera um bocadinho», mas não foi ouvida. assim que o empregado trouxe a sobremesa e o café a Armando, Virgínia perguntou «o que são as sobremesas?» e pediu uma. Clara, Xavier e Rita ficaram abandonados à sua sorte de comedores lentos, enquanto Virgínia comia uma sobremesa e Armando pedia uma aguardente. Clara recordou que também costumava terminar as refeições rapidamente e que até já tinha acontecido num jantar que Xavier e Rita desatassem à gargalhada pela sua solicitude ao acabar de comer e ir lavar os pratos, sem pausas. era então dali que lhe vinha o hábito, de comer quase sem respirar, a correr, de não fazer pausas entre o prato, a fruta e o cigarro que lhes seguia, sobretudo quando estava sozinha. comer mais devagar tinha sido portanto uma aprendizagem social depois de ter saído de casa dos pais. agora, era como se a rapidez de Armando e Virgínia fosse um grave sinal de desrespeito das normas que a grandes expensas tinha procurado adaptar-se. com o corpo tenso, percebeu que a moderação a que tinha dedicado a sua vida não passava de uma aprendizagem malograda, alimentada pela revolta, contra os sinais inconscientes da educação que tinha recebido.

20 de agosto de 2017

enquanto acendo um cigarro, o gato salta lentamente da mesa para o chão e desaparece para a varanda. ocorre-me à memória, ainda que de forma vaga, os rostos de um homem e de uma mulher que deixei de ver. o sol está a pique e eu, mais lenta que o gato, enquanto olho para a página em branco, penso na mulher que me disse que «[isto] não é como literatura, há uma concretização». tiro outro café para pensar nos livros que não escrevi apesar de escrever todos os dias e nos livros que li, que estou a ler, em como penso sempre que são os mais preciosos que existem. o que acontece quando leio? uma solução. e quando escrevo? um problema. acendo mais um cigarro, o homem e a mulher assomam como fantasmas para me fazer companhia, sorriem discretamente, quase poderia ouvi-los falar. uma música preenche o silêncio, provavelmente Bach. olho para o meu corpo ainda sem rugas, talvez ainda tenha algum encanto. parece-me que tudo o que tenho a dizer é superficial e, por isso, a minha avidez é incompreensível. vou levantar-me e esconder-me na casa sombria, tenho esperança de encontrar nela alguma benevolência.